O leito no peito, por Antonio Prata
Não sei quanto a Adão, Eva e você, leitor, mas em mim a pena ainda vigora, forte como nos tempos pré-diluvianos. Um minuto antes de deitar-me tenho ganas de ler toda a obra de Machado, pegar a Sessão Corujão do comecinho, arrumar a gaveta onde cartas da primeira namorada misturam-se às últimas declarações do imposto de renda. Já ao abrir os olhos pela manhã, tudo o que eu queria era poder dormir de novo, para sempre. Depois de atravessar esse lusco-fusco existencial em que a vida, pendurada nas pálpebras, faz todos os projetos parecerem impossíveis, ganhar o pão com o suor do próprio rosto é fichinha.
Assombra-me que o direito ao sono não tenha surgido na pauta de nenhuma vanguarda do século XX. Liberaram o sexo, acusaram a família, o Estado, a Igreja; queimaram fumo, a bandeira americana, sutiãs: por que raios não foram às praças pisotear despertadores? Por que os mesmos que conseguiram fazer “samba e amor até mais tarde” não tiveram coragem de dormir mais um pouquinho, evitando “muito sono de manhã”? (Alarme, do italiano, às armas! Pode haver etimologia mais nefasta para trazer-nos dos sonhos à labuta?).
O honrado leitor, que acorda com os galos ou as primeiras buzinas, talvez ache o assunto por demais comezinho para uma passeata. Não deve ter compreendido, ainda, as repercussões políticas da auto-gestão do sono. Se cada um acordasse quando quisesse as pessoas sairiam de casa aos poucos, não haveria rush, o transporte público daria conta do recado, as emissões de carbono despencariam, a Islândia pararia de derreter, a Björk estaria salva, assim como os ursos polares, Ilhabela, o futevôlei, Veneza, os pingüins e Ubatuba, sem contar que teríamos tempo para ler, ver TV, arrumar a gaveta, fazer samba e amor até mais tarde e não ter muito sono de manhã.
Embora o tema seja urgente, não o vi ser discutido em nenhum debate pelos candidatos que hoje disputam nosso voto. Sequer um nanico ou aspirante a vereador, desses que encampam as bandeiras mais disparatadas, levantou a voz (abaixou, talvez, seja o termo correto) para defender o sono de 10 milhões de habitantes.
Podem alegar que, dada a grandeza do problema, não caiba ao município resolvê-lo, mas ao governo federal ou talvez à ONU. De acordo, mas em algum lugar a revolução tem que começar. Ou nos levantamos imediatamente pela auto-gestão de nosso sono, ou daqui a pouco a água estará batendo em nossas olheiras. Ou vice-versa. Às armas!
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