Casa de Espíritos

sexta-feira, junho 02, 2006

José e Maria

O avô repete a mesma ladaínha todos os dias há quase quatro anos. 'Chama a A. para me cortar a barba'. 'Quando é que jantamos?' 'Já são horas de ir deitar?' Dez, onze, doze vezes por dia. A avó vai respondendo como pode. Às vezes ri-se, outras vezes dá-lhe palmadas nas costas e pede para ele se calar.
O avô passa o dia sentado numa cadeira de rodas. Não vê quase nada, nem ouve. E até este Inverno, nunca queria sair da sua marquise. Dorme de dia, quer conversa de noite. Ele e a avó estão juntos há sessenta anos. A avó abraça-se a ele e dá-lhe beijinhos quando demora mais que o normal depois da missa. E chora quando se lembra das acrobacias que ele fazia em cima da bicicleta ou quando corria os bailes a tocar acordeão.
O avô vai falando cada vez menos. Desde há um mês que se esforça para pôr a sua cadeira a andar até ao quintal e pergunta à avó para que lado é a Aldeia da Mata, que ele quer ir ter com os pais. A Aldeia fica a quase 300 quilómetros, foi onde o avô nasceu e viveu grande parte da sua vida. A avó diz-lhe que os pais morreram há muitos muitos anos. O avô diz que não, que ainda os viu há pouco tempo.