Casa de Espíritos

quarta-feira, outubro 03, 2007

O amor nos tempos do telemóvel e da cólera e angústica tonta e inútil

Ana Sá Lopes, jornalista DN

Vivia-se melhor quando? Não sabemos, nunca sabemos. Mas amava-se melhor sem o monstro. Sem a contagem de minutos da devolução da chamada, se está ligado e não respondes.
Ou se está desligado e não estás no cinema. Não respondes instantaneamente, não me amas.
O amor pede agora o novo predicado: a vocação para a instantaneidade. Tens que estar sempre pronto, como uma praça frente ao inimigo. Isto é uma guerra e ganha-se ou perde-se na voragem dos segundos. Se não fores exímio nos segundos isto é um horror do tipo não suficientemente amável. Não és suficientemente.
Como é que era antes? Antes vivíamos todos, incluindo os lisboetas, nas aldeias. Nas aldeias ninguém precisa de comunicações. O meu telemóvel era o café onde nasci. Quando o meu café ficava sem bateria, às sextas-feiras, sentia-me um bocadinho incontactável, mas passava.Porque demoras 97 minutos a responder? Quando acordas nunca te lembras de mim? A pergunta horrorosa: o que estás a fazer? A resposta horrorosa: vou-te mentir.
Não desejar, um mandamento da felicidade budista. Antigamente, não desejávamos e vivíamos melhor. Dez anos para trás: a quem passava pela cabeça desejar que o mimassem com dezenas de mensagens como uma catapulta? Ou que uma bodega de um texto minorco, cheio de inenarráveis kkkkk ou xxxxxx, que já se pegaram aos quarentões menos previsíveis, pudesse ser motivos de infindáveis preocupações? Não havendo desejo, não havia ansiedade. Também aqui nos tramaram (e quem o fez foi para "nosso bem").
Constança é uma mulher dos tempos modernos: ansiosa, com o verniz do polegar direito em virtuoso e permanente dedilhar de kkkkkkkk e xxxxx. Tem sempre os olhos postos no chão, com o telemóvel de permeio. Quando está sozinha, tem mais uma companhia, além do cigarro. Usa o telemóvel com o cronómetro ao lado: se não lhe respondem em meia-hora, destroça-se. Se respondem em cinco minutos, despreza-os (aos textos). Qual é o tempo exacto para não ser demais nem ser de menos? Se Roland Barthes voltasse à terra, adoraria trabalhar sobre estes fragmentos do discurso amoroso.
tt
kt
adrs
ts
xegar
xxxxxxxxxxx.