Casa de Espíritos

quarta-feira, junho 21, 2006

Paixão segundo C. (o fim)

C. costumava ir sempre sózinha àquela praia. Uma praia boa de iodo, cheia de rochas. C. colocava os pés com todo o cuidado até encontrar um canto confortável onde pudesse estender a toalha. Naquele dia, pôs mal o pé. Caiu. Quando abriu os olhos, viu sangue no peito, no biquini, nas mãos. Voltou a respirar e levantou-se. Fez o caminho de volta à estrada onde havia deixado o carro. Conduziu até aos bombeiros, sempre a aparar o sangue que teimava em não estancar. Fizeram-lhe o curativo e levaram-na ao hospital, a mais de 80 km dali. Sempre sózinha. Chegou a casa já à noite, com o queixo cheio de pontos. Às 22h, lá estava a mensagem dele. Tinha ligado o telemóvel para a enviar, e desligou logo a seguir. Nunca estava disponível. Não podia estar disponível para ela. Foi no dia da queda que C. decidiu nunca mais lhe responder. Tinha passado um ano e a paixão continuava lá. Mas a queda abriu-lhe o queixo e fechou-lhe o coração.

quarta-feira, junho 07, 2006

Sobre o Brasil

"Estou habituado com a miséria, mas com a maldade não dá para acostumar"
(in jornal o Metro; entrevista a Marcelo D2)

terça-feira, junho 06, 2006

De como eu (quase) nunca me lembro dos aniversários

Conhecemo-nos há pelo menos 14 anos. E há dois anos descobri que o teu aniversário era a 11, e não a 10. Durante todos estes anos liguei-te sempre a tempo, apesar de pensar estar atrasada. Este ano lembrei-me antes, mas esqueci-me no próprio dia. E nos dias que se seguiram. Lembrei-me de te ligar. Mas esqueci-me. (Lembra-me de tomar as ampolas) Lembro-me agora: parabéns. E as melhoras para a hérnia.

sexta-feira, junho 02, 2006

José e Maria

O avô repete a mesma ladaínha todos os dias há quase quatro anos. 'Chama a A. para me cortar a barba'. 'Quando é que jantamos?' 'Já são horas de ir deitar?' Dez, onze, doze vezes por dia. A avó vai respondendo como pode. Às vezes ri-se, outras vezes dá-lhe palmadas nas costas e pede para ele se calar.
O avô passa o dia sentado numa cadeira de rodas. Não vê quase nada, nem ouve. E até este Inverno, nunca queria sair da sua marquise. Dorme de dia, quer conversa de noite. Ele e a avó estão juntos há sessenta anos. A avó abraça-se a ele e dá-lhe beijinhos quando demora mais que o normal depois da missa. E chora quando se lembra das acrobacias que ele fazia em cima da bicicleta ou quando corria os bailes a tocar acordeão.
O avô vai falando cada vez menos. Desde há um mês que se esforça para pôr a sua cadeira a andar até ao quintal e pergunta à avó para que lado é a Aldeia da Mata, que ele quer ir ter com os pais. A Aldeia fica a quase 300 quilómetros, foi onde o avô nasceu e viveu grande parte da sua vida. A avó diz-lhe que os pais morreram há muitos muitos anos. O avô diz que não, que ainda os viu há pouco tempo.