Casa de Espíritos

quarta-feira, novembro 29, 2006

Números

Nunca gostámos de ser tratados como números mas, na verdade, todos somos um; passou um certo número de anos desde que nascemos, até aí tinham passado alguns meses na nossa gestação, alguns minutos na concepção, anos de vida até sermos concebidos. Números, números, números. Todos somos um, mas o nosso número de telefone são 9. A amante e a mulher tinham, por coincidência, números muito parecidos. O de telefone, não o número que calçavam. Os cinco primeiros números eram iguais. Ao bisbilhotar o telemóvel dele, a mulher descobriu mensagens amorosas para o que lhe parecia o seu próprio número. Não se lembrava de as ter recebido. Mandou-as mais uma vez, para guardar com todo o amor, mas o telefone não tocou nem uma, nem duas. À terceira, desistiu. Apagou as três do arquivo e foi-se deitar. Não dormiu nem uma hora.

quarta-feira, novembro 22, 2006

Por que gosto de andar de metro

(… e porque é que os meses em que tive de ir de carro para o trabalho foram os mais depressivos da minha vida.)

1. Gosto de ler um bom livro, um jornal ou mesmo um panfleto.
2. Porque gosto de ouvir conversas alheias.
3. Porque gosto de criar as minhas histórias depois de as ouvir.
4. Porque gosto de, às vezes, me cruzar com as mesmas pessoas quando vou e quando volto.
5. Porque gosto de ver que há muita gente que eu nunca vi.
6. Porque gosto de pensar na vida, sem ter de estar com atenção à condução.
7. Porque gosto de ser levada. E trazida.

quarta-feira, novembro 15, 2006

Conheço o sal...

Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousando em suor nocturno.
Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.
Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.
Conheço o sal que resta em minhas mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.
Conheço o sal da tua boca, o sal
o sal da tua língua, o sal dos teus mamilos,
e o da cintura se encurvando das ancas.
A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.
Jorge de Sena em "Conheço o Sal...E Os Outros Poemas"(1974)

segunda-feira, novembro 06, 2006

Mil perdões

Te perdôo
Por fazeres mil perguntas
Que em vidas que andam juntas
Ninguém faz
Te perdôo
Por pedires perdão
Por me amares demais
Te perdôo
Te perdôo por ligares
Pra todos os lugares
De onde eu vim
Te perdôo
Por ergueres a mão
Por bateres em mim
Te perdôo
Quando anseio pelo instante de sair
E rodar exuberante
E me perder de ti
Te perdôo
Por quereres me ver
Aprendendo a mentir (te mentir, te mentir)
Te perdôo
Por contares minhas horas
Nas minhas demoras por aí
Te perdôo
Te perdôo porque choras
Quando eu choro de rir
Te perdôo
Por te trair

Chico Buarque, 1983